Fala-me de Amor

Falais baixo se falais de amor - by Shakespeare

sexta-feira, março 04, 2005

Petit Prince - cap XXV - XXVI - XXVII

- Os homens, disse o principezinho, se enfurnam nos rápidos, mas não sabem o que procuram. Então eles se agitam, ficam rodando à toa...

E acrescentou:

- E isso não adianta...

O poço a que tínhamos chegado não se parecia de forma alguma com os poços do Saara. Os poços do Saara são simples buracos na areia. Aquele, parecia um poço de aldeia. Mas não havia ali aldeia alguma, e eu julgava sonhar.

- É estranho, disse eu ao principezinho, tudo está preparado: a roldana, o balde e a corda.

Ele riu, pegou a corda, fez girar a roldana. E a roldana gemeu como gemem os velhos cata-ventos quando o vento dormiu por muito tempo.

- Tu escutas? disse o príncipe. Estamos acordando o poço, ele canta...

Eu não queria que ele fizesse esforço:

- Deixa que eu puxe, disse eu, é muito pesado para o teu tamanho.

Lentamente, icei o balde até em cima, e o instalei com cuidado na borda do poço. Nos meus ouvidos permanecia ainda o canto da roldana, e na água, que ainda brilhava, via tremer o sol.

- Tenho sede dessa água, disse o principezinho. Dá-me de beber...

E eu compreendi o que ele havia buscado!

Levantei-lhe o balde até a boca. Ele bebeu, de olhos fechados. Era doce como uma festa. Essa água era muito mais que alimento. Nascera da caminhada sob as estrelas, do canto da roldana, do esforço do meu braço. Era boa para o coração, como um presente. Quando eu era pequeno, todo o esplendor do presente de Natal estava também na luz da árvore, na música da missa de meia-noite, na doçura dos risos...

- Os homens do teu planeta, disse o principezinho, cultivam cinco mil rosas num mesmo jardim... e não encontram o que procuram...

- Não encontram, respondi...

- E no entanto o que eles buscam poderia ser achado numa só rosa, ou num pouquinho d'água...

- É verdade.

E o principezinho acrescentou:

- Mas os olhos são cegos. É preciso buscar com o coração...

Eu havia bebido. Respirava facilmente. A areia é cor de mel quando amanhece. E a cor de mel me fazia feliz. Por que haveria eu de estar triste?...

- É preciso, disse baixinho o príncipe, que cumpras a tua promessa. Ele estava, de novo, sentado junto de mim.

- Que promessa?

- Tu sabes... a mordaça do meu carneiro... eu sou responsável pela flor!

Tirei do bolso as minhas tentativas de desenho. O principezinho os viu e disse rindo:

- Teus baobás parecem um pouco repolhos...

- Oh!

Eu estava tão orgulhoso de meus baobás!

- Tua raposa... as orelhas dela... parecem chifres... são compridas demais!

Ele riu outra vez.

- Tu és injusto, meu bem, eu só sabia desenhar jibóias abertas e fechadas...

- Não faz mal, disse ele, as crianças entendem.

Rabisquei, portanto, uma pequena mordaça. Mas sentia, ao entregá-la, um aperto no coração:

- Tu tens projeto que eu ignoro...

Ele não me respondeu. Mas disse:

- Lembras-te da minha queda na Terra? Amanhã será o aniversário...

Depois, após um silêncio, acrescentou:

- Caí pertinho daqui...

E ficou vermelho ao dizê-lo.

E de novo, sem compreender porque, eu sentia um estranho pesar. No entanto, ocorreu-me a pergunta:

- Então não foi por acaso que vagavas sozinho, quando te encontrei, há oito dias, a milhas e milhas de qualquer região habitada! Não estarias voltando ao ponto da queda?

O principezinho ficou vermelho de novo.

E eu acrescentei, hesitando:

- Terá sido por causa do aniversário?...

O principezinho ficou mais vermelho. Não respondia nunca às perguntas. Mas quando a gente fica vermelho, não é o mesmo que dizer "sim"?

- Ah! disse-lhe eu, eu tenho medo...

Mas ele respondeu:

- Tu deves agora trabalhar. Ir em busca do teu aparelho. Espero-te aqui. Volta amanhã de tarde...

Mas eu não estava tranqüilo. Lembrava-me da raposa. A gente corre o risco de chorar um pouco quando se deixou cativar...

Havia, ao lado do poço, a ruína de um velho muro de pedra. Quando voltei do trabalho, no dia seguinte, vi, de longe, o principezinho sentado no alto, com as pernas balançando. E eu o escutei dizer:

- Tu não te lembras então? Não foi bem aqui o lugar!

Uma outra voz devia responder-lhe, porque replicou em seguida:

- Não; não estou enganado. O dia é este, mas não o lugar...

Prossegui o caminho para o muro. Continuava a não ver ninguém. No entanto o principezinho replicou novamente:

- ... Está bem. Tu verás onde começa, na areia, o sinal dos meus passos. Basta esperar-me. Estarei ali esta noite.

Eu me achava a vinte metros do muro e continuava a não ver nada. O principezinho disse ainda, após um silêncio:

- O teu veneno é do bom? Estás certa de que não vou sofrer muito tempo?

Parei, o coração apertado, sem compreender ainda.

- Agora, vai-te embora, disse ele... eu quero descer!

Então baixei os olhos para o pé do muro, e dei um salto! Lá estava, erguida para o principezinho, uma dessas serpentes amarelas que nos liquidam num minuto. Enquanto procurava o revólver no bolso, dei uma rápida corrida.

Mas, percebendo o barulho, a serpente se foi encolhendo lentamente, como um repuxo que morre. E, sem se apressar demais, enfiou-se entre as pedras, num leve tinir de metal.

Cheguei ao muro a tempo de receber nos braços o meu caro principezinho, pálido como a neve.

- Que história é essa? Tu conversas agora com as serpentes?

Desatei o nó do seu eterno lenço dourado. Umedeci-lhe as têmporas. Dei-lhe água. E agora, não ousava perguntar-lhe coisa alguma. Olhou-me gravemente e passou-me os bracinhos no pescoço. Sentia-lhe o coração bater de encontro ao meu, como o de um pássaro que morre, atingido pela carabina. Ele me disse:

- Estou contente de teres descoberto o defeito do maquinismo. Vais poder voltar para casa...

- Como soubeste disso?

- Eu vinha justamente anunciar-lhe que, contra toda expectativa, havia realizado o conserto!

Nada respondeu à minha pergunta, mas acrescentou:

- Eu também volto hoje para casa...

Depois, com melancolia, ele disse:

- É bem mais longe... bem mais difícil...

Eu percebia claramente que algo de extraordinário se passava. Apertava-o nos braços como se fosse uma criancinha; mas tinha a impressão de que ele ia deslizando verticalmente no abismo, sem que eu nada pudesse fazer para detê-lo...

Seu olhar estava sério, perdido ao longe:

- Tenho o teu carneiro. E a caixa para o carneiro. E a mordaça...

Ele sorriu com tristeza.

Esperei muito tempo. Pareceu-me que ele ia se aquecendo de novo, pouco a pouco:

- Meu querido, tu tiveste medo...

É claro que tivera. Mas ele sorriu docemente.

- Terei mais medo ainda esta noite...

O sentimento do irreparável gelou-me de novo. E eu compreendi que não podia suportar a idéia de nunca mais escutar esse riso. Ele era para mim como uma fonte no deserto.

- Meu bem, eu quero ainda escutar o teu riso...

Mas ele me disse:

- Faz um ano esta noite. Minha estrela se achará justamente em cima do lugar onde eu caí o ano passado...

- Meu bem, não será um sonho mau essa história d serpente, de encontro marcado, de estrela?

Mas não respondeu à minha pergunta. E disse:

- O que é importante, a gente não vê...

- A gente não vê...

- Será como a flor. Se tu amas uma flor que se acha numa estrela, é doce, de noite, olhar o céu. Todas as estrelas estão floridas.

- Todas as estrelas estão floridas.

- Será como a água. Aquela que me deste parecia música, por causa da roldana e da corda... Lembras-te como era boa?

- Lembro-me...

- Tu olharás, de noite, as estrelas. Onde eu moro é muito pequeno, para que eu possa te mostrar onde se encontra a minha. É melhor assim, Minha estrela será então qualquer das estrelas. Gostarás de olhar todas elas... Serão, todas, tuas amigas. E depois, eu vou fazer-te um presente...

Ele riu outra vez.

- Ah! meu pedacinho de gente, meu amor, como eu gosto de ouvir esse riso!

- Pois é ele o meu presente... será como a água...

- Que queres dizer?

- As pessoas têm estrelas que não são as mesmas. para uns, que viajam, as estrelas são guias. Para outros, elas não passam de pequenas luzes. Para outros, os sábios, são problemas. Para o meu negociante, eram ouro. mas todas essas estrelas se calam. Tu, porém, terás estrelas como ninguém...

- Que queres dizer?

- Quando olhares o céu de noite, porque habitarei uma delas, porque numa delas estarei rindo, então será como se todas as estrelas te rissem! E tu terás estrelas que sabem rir!

E ele riu mais uma vez.

- E quando te houveres consolado (a gente sempre se consola), tu te sentirás contente por me teres conhecido. Tu serás sempre meu amigo. Terás vontade de rir comigo. E abrirás às vezes a janela à toa, por gosto... E teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu. Tu explicarás então: "Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!" E eles te julgarão maluco. Será uma peça que te prego...

E riu de novo.

- Será como se eu te houvesse dado, em vez de estrelas, montões de guizos que riem...

E riu de novo, mais uma vez. Depois, ficou sério:

- Esta noite... tu sabes... não venhas.

- Eu não te deixarei.

- Eu parecerei sofrer... eu parecerei morrer. É assim. Não venhas ver. Não vale a pena...

- Eu não te deixarei.

Mas ele estava preocupado.

- Eu digo isto... também por causa da serpente. É preciso que não te morda. As serpentes são más. Podem morder por gosto...

- Eu não te deixarei.

Mas uma coisa o tranqüilizou:

- Elas não têm veneno, é verdade, para uma segunda mordida...

Essa noite, não o vi pôr-se a caminho. Evadiu-se sem rumor. Quando consegui apanhá-lo, caminhava decidido, a passo rápido. Disse-me apenas:

- Ah! estás aqui...

E ele me tomou pela mão. Mas afligiu-se ainda:

- Fizeste mal. Tu sofrerás. Eu parecerei morto e não será verdade...

Eu me calava.

- Tu compreendes. É longe demais. Eu não posso carregar este corpo. É muito pesado.

Eu me calava.

- Mas será como uma velha casca abandonada. Uma casca de árvore não é triste...

Eu me calava.

Perdeu um pouco de coragem. Mas fez ainda um esforço:

- Será bonito, sabes? Eu também olharei as estrelas. Todas as estrelas serão poços com uma roldana enferrujada. Todas as estrelas me darão de beber...

Eu me calava.

- Será tão divertido! Tu terás quinhentos milhões de guizos, eu terei quinhentos milhões de fontes...

E ele se calou também, porque estava chorando...

- É aqui. Deixa-me dar um passo sozinho.

E sentou-se, porque tinha medo.

Disse ainda:

- Tu sabes... minha flor... eu sou responsável por ela! Ela é tão frágil! Tão ingênua! Tem quatro espinhos de nada para defendê-la do mundo...

Eu sentei-me também, pois não podia mais ficar de pé.

Ele disse:

- Pronto... Acabou-se...

Hesitou ainda um pouco, depois ergueu-se. Deu um passo. Eu... eu não podia mover-me.

Houve apenas um clarão amarelo perto da sua perna. Permaneceu, por um instante, imóvel. Não gritou. Tombou devagarinho como uma árvore tomba.

Nem fez sequer barulho, por causa da areia.

E agora, certamente, já se vão seis anos... Jamais contara essa história. Os camaradas ficaram contentes de ver-me são e salvo. Eu estava triste, mas dizia: É o cansaço...

Agora já me consolei um pouco. Mas não de todo. Sei que ele voltou ao seu planeta; pois, ao raiar do dia, não lhe encontrei o corpo. Não era um corpo tão pesado assim... E gosto, à noite, de escutar as estrelas. Quinhentos milhões de guizos...

Mas eis que sucede uma coisa extraordinária. Na mordaça que desenhei para o principezinho, esqueci de juntar a correia! Não poderá jamais prendê-la ao carneiro. E eu pergunto então: "Que se terá passado no planeta? Pode bem ser que o carneiro tenha comido a flor..."

Ora eu penso: "Certamente que não! O principezinho encerra a flor todas as noites na redoma de vidro e vigia bem o carneiro..." Então, eu me sinto feliz. E todas as estrelas riem docemente.

Ora eu digo: "Uma vez ou outra a gente se distrai e basta isto! Esqueceu uma noite a redoma de vidro ou o carneiro saiu de mansinho, sem que fosse notado..." Então os guizos se transformam todos em lágrimas!...

Eis aí um mistério bem grande. Para vocês, que amam também o principezinho, como para mim, todo o universo muda de sentido, se num lugar, que não sabemos onde, um carneiro, que não conhecemos, comeu ou não uma rosa...

Olhem o céu. Perguntem: Terá ou não terá o carneiro comido a flor? E verão como tudo fica diferente...

E nenhuma pessoa grande jamais compreenderá que isso tenha tanta importância.

Esta é, para mim, a mais bela paisagem do mundo, e também a mais triste. É a mesma da página precedente. Mas desenhei-a de novo para mostrá-la bem. Foi aqui que o principezinho apareceu na terra, e desapareceu depois.

Olhem atentamente esta paisagem para que estejam certos de reconhecê-la, se viajarem um dia na África, através do deserto. E se acontecer passarem por ali, eu lhes suplico que não tenham pressa e que esperem um pouco bem debaixo da estrela! Se então um menino vem ao encontro de vocês, se ele ri, se tem cabelos de ouro, se não responde quando interrogam, adivinharão quem é. Então, por favor, não me deixem tão triste: escrevam-me depressa que ele voltou...
Antoine de Saint-Exupéry