Fala-me de Amor

Falais baixo se falais de amor - by Shakespeare

sexta-feira, março 04, 2005

Petit Prince - cap XIII - XIV - XV

O quarto planeta era o do homem de negócios. Estava tão ocupado que não levantou sequer a cabeça à chegada do príncipe.

- Bom dia, disse-lhe este. O seu cigarro está apagado.

- Três e dois são cinco. Cinco e sete, doze. Doze e três, quinze. Bom dia. Quinze e sete, vinte e dois. Vinte e dois e seis, vinte e oito. Não há tempo para acender de novo. Vinte e seis e cindo, trinta e um. Uf! São pois quinhentos e um milhões, seiscentos e vinte e dois mil, setecentos e trinta e um.

- Quinhentos milhões de quê?

- Hem? Ainda estás aqui? Quinhentos e um milhões de... eu não sei mais... Tenho tanto trabalho. Sou um sujeito sério, não me preocupo com ninharias! Dois e cinco, sete...

- Quinhentos milhões de quê? repetiu o principezinho, que nunca na sua vida renunciara a uma pergunta, uma vez que a tivesse feito.

O homem de negócios levantou a cabeça:

- Há cinqüenta e quatro anos que habito este planeta e só fui incomodado três vezes. A primeira vez foi há vinte e dois anos, por um besouro caído não sei de onde. Fazia um barulho terrível, e cometi quatro erros na soma. A segunda foi há onze anos, por uma crise de reumatismo. Falta de exercício. Não tenho tempo para passeio. Sou um sujeito sério. A terceira... é esta! Eu dizia, portanto, quinhentos e um milhões...

- Milhões de quê?

O homem de negócios compreendeu que não havia esperança de paz:

- Milhões dessas coisinhas que se vêem às vezes no céu.

- Moscas?

- Não, não. Essas coisinhas que brilham.

- Abelhas?

- Também não. Essas coisinhas douradas que fazem sonhar os ociosos. Eu cá sou um sujeito sério. Não tenho tempo para divagações.

- Ah! estrelas?

- Isso mesmo. Estrelas.

- E que fazes tu de quinhentos milhões de estrelas?

- Quinhentos e um milhões, seiscentos e vinte e duas mil, setecentos e trinta e uma. Eu sou um sujeito sério. Gosto de exatidão.

- O que fazes tu dessas estrelas?

- Que faço delas?

- Sim.

- Nada. Eu as possuo.

- Tu possuis as estrelas?

- Sim.

- Mas eu já vi um rei que...

- Os reis não possuem. Eles "reinam" sobre. É muito diferente.

- E de que te serve possuir as estrelas?

- Servem-me para ser rico.

- E para que te serve ser rico?

- Para comprar outras estrelas, se alguém achar.

Esse aí, disse o principezinho para si mesmo, raciocina um pouco como o bêbado.

No entanto, fez ainda algumas perguntas.

- Como pode a gente possuir as estrelas?

- De quem são elas? respondeu, ameaçador, o homem de negócios.

- Eu não sei. De ninguém.

- Logo são minhas, porque pensei primeiro.

- Basta isso?

- Sem dúvida. Quando achas um diamante que não é de ninguém, ele é teu. Quando achas uma ilha que não é de ninguém, ela é tua. Quando tens uma idéia primeiro, tua a fazes registrar: ela é tua. E quanto a mim, eu possuo as estrelas, pois ninguém antes de mim teve a idéia de as possuir.

- Isso é verdade, disse o principezinho. E que fazes tu com elas?

- Eu as administro. Eu as conto e reconto, disse o homem de negócios. É difícil. Mas eu sou um homem sério!

O principezinho ainda não estava satisfeito.

- Eu, se possuo um lenço, posso colocá-lo em torno do pescoço e levá-lo comigo. Se possuo uma flor, posso colher a flor e levá-la comigo. Mas tu não podes colher as estrelas.

- Não. Mas eu posso colocá-las no banco.

- Que quer dizer isto?

- Isso quer dizer que eu escrevo num papelzinho o número das minhas estrelas. Depois tranco o papel à chave numa gaveta.

- Só isto?

- E basta...

É divertido, pensou o principezinho. É bastante poético. Mas não é muito sério.

O principezinho tinha, sobre as coisas sérias, idéias muito diversas das idéias das pessoas grandes.

- Eu, disse ele ainda, possuo uma flor que rego todos os dias. Possuo três vulcões que revolvo toda semana. Porque revolvo também o que está extinto. A gente nunca sabe. É útil para os meus vulcões, é útil para a minha flor que eu os possua. Mas tu não és útil às estrelas...

O homem de negócios abriu a boca, mas não achou nada a responder, e o principezinho se foi...

As pessoas grandes são mesmo extraordinárias, repetia simplesmente no percurso da viagem.

O quinto planeta era muito curioso. Era o menor de todos. Mal dava para um lampião e o acendedor de lampiões...

O principezinho não podia atinar para que pudessem servir, no céu, num planeta sem casa e sem gente, um lampião e o acendedor de lampiões. No entanto, disse consigo mesmo:

- Talvez esse homem seja mesmo absurdo. No entanto, é menos absurdo que o rei, que o vaidoso, que o homem de negócios, que o beberrão. Seu trabalho ao menos tem um sentido. Quando acende o lampião, é como se fizesse nascer mais uma estrela, mais uma flor. Quando o apaga, porém, é estrela ou flor que adormecem. É uma ocupação bonita. E é útil, porque é bonita.

Quando abordou o planeta, saudou respeitosamente o acendedor:

- Bom dia. Por que acabas de apagar teu lampião?

- É o regulamento, respondeu o acendedor. Bom dia.

- Que é o regulamento?

- É apagar meu lampião. Boa noite.

E tornou a acender.

- Mas por que acabas de o acender de novo?

- É o regulamento, respondeu o acendedor.

- Eu não compreendo, disse o principezinho.

- Não é para compreender, disse o acendedor. Regulamento é regulamento. Bom dia.

E apagou o lampião.

Em seguida enxugou a fronte num lenço de quadrinhos vermelhos.

- Eu executo uma tarefa terrível. Antigamente era razoável. Apagava de manhã e acendia à noite. Tinha o resto do dia para descansar e o resto da noite para dormir...

- E depois disso, mudou o regulamento?

- O regulamento não mudou, disse o acendedor. Aí é que está o drama! O planeta de ano em ano gira mais depressa, e o regulamento não muda!

- E então? disse o principezinho.

- Agora, que ele dá uma volta por minuto, não tenho mais um segundo de repouso. Acendo e apago uma vez por minuto!

- Ah! que engraçado! Os dias aqui duram um minuto!

- Não é nada engraçado, disse o acendedor. Já faz um mês que estamos conversando.

- Um mês?

- Sim. Trinta minutos. Trinta dias. Boa noite.

E ascendeu o lampião.

O principezinho considerou-o, e amou aquele acendedor tão fiel ao regulamento. Lembrou-se dos pores-do-sol que ele mesmo produzia, recuando um pouco a cadeira. Quis ajudar o amigo.

- Sabes? Eu sei de um modo de descansar quando quiseres...

- Eu sempre quero, disse o acendedor.

Pois a gente pode ser, ao mesmo tempo, fiel e preguiçoso.

E o principezinho prosseguiu:

- Teu planeta é tão pequeno, que podes, com três passos, dar-lhe a volta. Basta andares lentamente, bem lentamente, de modo a ficares sempre ao sol. Quando quiseres descansar, caminharás... e o dia durará quanto queiras.

- Isso não adianta muito, disse o acendedor. O que eu gosto mais na vida é de dormir.

- Então não há remédio, disse o principezinho.

- Não há remédio, disse o acendedor. Bom dia.

E apagou seu lampião.

Esse aí, disse para si o principezinho, ao prosseguir a viagem para mais longe, esse aí seria desprezado por todos os outros, o rei, o vaidoso, o beberrão, o homem de negócios. No entanto, é o único que não me parece ridículo. Talvez porque é o único que se ocupa de outra coisa que não seja ele próprio.

Suspirou de pesar e disse ainda:

- Era o único que eu podia ter feito meu amigo. Mas seu planeta é mesmo pequeno demais. Não há lugar para dois...

O que o principezinho não ousava confessar é que os mil quatrocentos e quarenta pores-do-sol em vinte e quatro horas davam-lhe certa saudade do abençoado planeta.

O sexto planeta era dez vezes maior. Era habitado por um velho que escrevia livros enormes.

- Bravo! eis um explorador! exclamou ele, logo que viu o principezinho.

O principezinho assentou-se na mesa, ofegante. Já viajara tanto!

- De onde vens? perguntou-lhe o velho.

- Que livro é esse? perguntou-lhe o principezinho. Que faz o senhor aqui?

- Sou geógrafo, respondeu o velho.

- Que é um geógrafo? perguntou o principezinho.

- É um sábio que sabe onde se encontram os mares, os rios, as cidades, as montanhas, os desertos.

É bem interessante, disse o principezinho. Eis, afinal, uma verdadeira profissão! E lançou um olhar em torno de si, no planeta do geógrafo. Nunca havia visto planeta tão majestoso.

- O seu planeta é muito bonito. Haverá oceanos nele?

- Como hei de saber? disse o geógrafo.

- Ah! (O principezinho estava decepcionado.) E montanhas?

- Como hei de saber? disse o geógrafo.

- E cidades, e rios, e desertos?

- Como hei de saber? disse o geógrafo pela terceira vez.

- Mas o senhor é geógrafo!

- É claro, disse o geógrafo; mas não sou explorador. Há uma falta absoluta de exploradores. Não é o geógrafo que vai contar as cidades, os rios, as montanhas, os mares, os oceanos, os desertos. O geógrafo é muito importante para estar passeando. Não deixa um instante a escrivaninha. Mas recebe os exploradores, interroga-os, anota as suas lembranças. E se as lembranças de alguns lhe parecem interessantes, o geógrafo estabelece um inquérito sobre a moralidade do explorador.

- Por que?

- Porque um explorador que mentisse produziria catástrofes nos livros de geografia. Como o explorador que bebesse demais.

- Por que? perguntou o principezinho.

- Porque os bêbados vêem dobrado. Então o geógrafo anotaria duas montanhas onde há uma só.

- Conheço alguém, disse o principezinho, que seria um mau explorador.

- É possível. Pois bem, quando a moralidade do explorador parece boa, faz-se uma investigação sobre a sua descoberta.

- Vai-se ver?

- Não. Seria muito complicado. mas exige-se do explorador que ele forneça provas. Tratando-se, por exemplo, de uma grande montanha, ele trará grandes pedras.

O geógrafo, de súbito, se entusiasmou:

- Mas tu vens de longe. Tu és explorador! Tu me vais descrever o teu planeta!

E o geógrafo, tendo aberto o seu caderno, apontou o seu lápis. Anotam-se primeiro a lápis as narrações dos exploradores. Espera-se, para cobrir à tinta, que o explorador tenha fornecido provas.

- Então? interrogou o geógrafo.

- Oh! onde eu moro, disse o principezinho, não é interessante: é muito pequeno. Eu tenho três vulcões. Dois vulcões em atividade e um vulcão extinto. A gente nunca sabe...

- A gente nunca sabe, repetiu o geógrafo.

- Tenho também uma flor.

- Mas nós não anotamos as flores, disse o geógrafo.

- Por que não? É o mais bonito!

- Porque as flores são efêmeras.

- Que quer dizer "efêmera"?

- As geografias, disse o geógrafo, são os livros de mais valor. Nunca ficam fora de moda. É muito raro que um monte troque de lugar. É muito raro um oceano esvaziar-se. Nós escrevemos coisas eternas.

- Mas os vulcões extintos podem se reanimar, interrompeu o principezinho. Que quer dizer "efêmera"?

- Que os vulcões estejam extintos ou não, isso dá no mesmo para nós, disse o geógrafo. O que nos interessa é a montanha. Ela não muda.

- Mas que quer dizer "efêmera"? repetiu o principezinho, que nunca, na sua vida, renunciara a uma pergunta que tivesse feito.

- Quer dizer "ameaçada de próxima desaparição".

- Minha flor estará ameaçada de próxima desaparição?

- Sem dúvida.

Minha flor é efêmera, disse o principezinho, e não tem mais que quatro espinhos para defender-se do mundo! E eu a deixei sozinha!

Foi seu primeiro movimento de remorso. Mas retomou coragem:

- Que me aconselha a visitar? perguntou ele.

- O planeta Terra, respondeu-lhe o geógrafo. Goza de grande reputação...

E o principezinho se foi, pensando na flor.